4.8.07

Perfil de Rui Horta, Coreógrafo - 3ª Parte



Em 1984 regressou a Portugal, porque tinha saudades, mas sobretudo porque lhe ofereceram a oportunidade de criar uma companhia de dança. Foi a Companhia de Dança de Lisboa. Tratava-se de um projecto de continuidade daquilo que eram as companhias de reportório. Era um projecto mais voltado para a dança moderna com alguma nova dança e dança contemporânea. Nela começaram a dançar pessoas como João Fiadeiro, Benvindo Fonseca e Clara Andermatt. “Era praticamente o único sítio onde se poderia fazer dança de uma forma mais profissional fora do Ballet Gulbenkian. Foi bonito nesse aspecto, mas foi limitado no ponto de vista estético. Não foi um projecto de ruptura”. Convidou um dos seus melhores amigos para fazer a direcção administrativa, José Manuel Oliveira, que nessa altura era fotógrafo, mas as coisas acabaram por não correr bem. “Houve uma situação um bocado desagradável, um processo um pouco “hamletiano”. Ficou ele com a companhia e eu fui posto na rua, o que foi fantástico para mim, agradeço-lhe profundamente”.

Foi nesta altura que surgiu outra das pessoas mais importantes no seu percurso, Carlos Andrade, marido de Vanda Ribeiro da Silva. “Foi um homem extraordinário comigo, apoiou-me”. Carlos Andrade, quadro intermédio num governo muito frágil, emprestou-lhe o seu dinheiro pessoal para lançar o Rui Horta & Friends. “Não havia Ministério da Cultura na altura, havia uma vaga Secretaria de Estado da Cultura, com uma direcção geral de acção cultural”. Aqui Fernando Alçada, director geral de acção cultural, também teve um papel importante, ao apostar no seu trabalho. “São estas coisas que nos fazem crescer”.

E Rui Horta cresceu. Os seis anos, entre 1984 e 1990, são caracterizados por uma grande vontade de passar conhecimento de tudo o que tinha aprendido em Nova Iorque a todas as pessoas que queriam dançar, “formei montes de gente e toquei uma geração inteira”. Nesta altura, tinha o estúdio nos Bombeiros Lisbonenses. Este estúdio foi um ponto de encontro de freelancers, livre para toda a gente. “Era o meu estúdio de dança. Toda a gente tinha a chave. Muita gente ensaiava”. Nomes como João Fiadeiro e Clara Andermatt passaram por lá, “às dez da noite iam para o estúdio e ensaiavam até à uma, duas da manhã. Porque era de todos”.

É então que o coreógrafo parte para a Alemanha, ali fica por dez anos e regressa para se instalar em Montemor-o-Novo. A relação de empatia com o Presidente da Câmara, Carlos Pinto Sá, foi fundamental. “Falámos meia hora e ele foi-me logo mostrar o convento. Ficou decidido ao fim de meia hora que eu ia ficar lá”. Ao fim de dois meses, Rui Horta já estava em Montemor com “armas e bagagens”. O primeiro outdoor que pôs do lado de fora do convento teve inscrita a frase “Estamos Cá”.

A relação de Rui Horta com a terra que o acolheu tem sido marcada por um trabalho muito próximo com várias instituições. Após seis anos, o Convento da Saudação, graças ao seu trabalho, está parcialmente recuperado e as negociações com o governo para a recuperação deste, que é o maior convento do sul de Portugal, estão a decorrer. A proximidade com o tecido escolar também tem sido uma aposta.

Mas, para lá deste trabalho sociocultural, há o trabalho que é realizado no centro coreográfico “Espaço do Tempo”. Ali recebe anualmente 36 equipas criativas, que se traduzem em mais de 700 artistas. “Pessoas emergentes. Quando recebemos um pedido, vamos ver a companhia in locco ou vemos em vídeo. É um trabalho muito intenso. No fim de contas, quem tem de escolher, tem de estar informado. Essa é a parte mais dura, mais difícil”.

Quando olha para trás custa-lhe a acreditar que já tivessem passado trinta anos. Foram milhares e milhares de horas a trabalhar com pessoas, em que conheceu o mundo inteiro. Existiram momentos de grande solidão. “Sozinho no meio de uma grande cidade”. Mas também existiram momentos de enorme sucesso em cidades do outro lado do planeta, como Tóquio e Xangai. “São 30 anos que já são para mim duas vidas, ou três. Hoje já podia ir-me embora, porque já fiz tudo o que tinha para fazer, não preciso fazer mais”.

No entanto, o arquitecto, bailarino, professor, coreógrafo e pai tem cinquenta anos e continua a receber convites para sair de Portugal. “É muito tentador, mas não vejo os meus filhos a mudarem para outro país. Se eu não tivesse crianças, talvez”. Os seus filhos vivem e estudam em Montemor. “Vai tudo à escola em Montemor. À escola pública, à saúde pública. Eu sou uma pessoa que acredita nos serviços públicos. As pessoas têm que pagar impostos, mas têm que exigir dos governantes”. Esta educação que dá aos filhos é muito diferente da que ele próprio e os seus sete irmãos receberam. O pai foi professor catedrático da Faculdade de Medicina. “Foi um médico bastante conhecido em Portugal, foi bastonário da ordem dos médicos. Foi director de um hospital”. A mãe também foi professora universitária, doutorada em anatomia patológica.

O filho “do meio da tabela” viveu a sua infância e adolescência nas Avenidas Novas, em Lisboa, mais precisamente na esquina da Av. Defensores de Chaves com a Av. Miguel Bombarda. Foi aluno da turma B do Camões, da qual saiu também António Guterres. “Venho de uma família com um nível intelectual muito grande. Os meus pais, apesar de terem profissões muito técnicas, eram pessoas intelectualmente muito diferenciadas. Tenho uma irmã, a Maria Teresa Horta, que é poetisa e tenho um irmão que é de História. Há de tudo na minha família”. Dos seus ex-colegas do Liceu Camões ainda mantém contacto com alguns, entre eles, António Carrapatoso, actual presidente da Vodafone. “É um homem muito inteligente, com quem é bom conversar”.

Teve uma infância feliz, embora a considere um pouco formatada. “Foi uma educação da burguesia intelectual portuguesa, com umas referências um pouco britânicas, como compete à própria burguesia portuguesa”. Da parte do pai teve uma influência muito grande da literatura francesa. “O meu pai lia muito Simone de Beauvoir, Saint-Exupéry, Sartre, Balzac, toda aquela literatura de referência francesa que andava sempre ali por cima do escritório e que eu li muito cedo”. Cedo começou a assinar o L’Avant Scène, onde viu as primeiras “figurinhas” de espectáculos, com fotografias, textos teatrais, que lia em francês. “Na prática fui um privilegiado. Tive acesso, desde muito cedo, a estas experiências fortíssimas”. No Verão, como contra-ponto a esta educação um pouco mais formal no Inverno, eram, ele e os irmãos, deixados à solta numa praia do sul durante muitos meses com uma tia já mais velha. “Libertou-nos de algumas tensões de formatação. Equilibrou a balança. Foi um tempo absolutamente maravilhoso, de selvajaria, de possibilidade de conhecer tudo e mais alguma coisa”.

Hoje pensa que poderá não estar a dar aos filhos aquilo que os seus pais lhe deram. “É uma grande incógnita para mim. Tenho dúvidas se estou a fazer bem”. Por outro lado dá-lhes muitas outras coisas. “Temos tempo para eles. O meu pai não estava tão perto de mim, como eu estou dos meus filhos. Faço os trabalhos de casa com eles e vamos dar passeios no campo. Andamos de bicicleta. Falamos imenso. Todas as noites lhes conto uma história e há uma grande proximidade na família”.

Rui Horta, para lá de coreógrafo, é um criador e considera o que faz um trabalho de auto-destruição. “Eu nunca estou contente. Mas eu também sou assim. Mesmo quando estou calmo, nunca estou sereno”. Se tivesse de escolher os trabalhos mais representativos destes trinta anos, Rui Horta escolheria a primeira obra que foi fazer para a Alemanha, “Linha” (uma das obras de ruptura. Em 1989). Depois optaria pela obra que o tornou conhecido mundialmente, “Objecto Constante”, em 1994. Há também uma “obra maldita”, mas que adora, “Khora”. “É o nome de um livro do Jacques Derrida, que eu gosto imenso e que deu origem a uma obra negra minha, mas que é talvez uma das minhas melhores obras, em 1997”. E, finalmente, a obra que considera ser a mais forte, “Pixel”. “O Pixel aparentemente marcou muita gente. Continua a ser uma obra muito pedida, muito pretendida. Há coisas assim misteriosas. Não custou nada a fazer. Fiz isto num mês e meio. As coisas que eu tenho feito de mais interessantes não têm custado. Às vezes quando a gente se envolve imenso com as coisas, custa que se farta”.

Para o criador Rui Horta há de facto um processo de criação que é quase como um processo de incubação de uma doença viral. “Apanhas uma infecção qualquer. Sem saber o que tens ainda, começas a ter dores no corpo. Tens sintomas, mas não sabes ainda qual é o diagnóstico”. Para ele, a criação é isto. Começa com os seus livros de cabeceira. Dantes, tinha, por exemplo, os do Rem Koolhaas, prémio nobel da arquitectura (Pritzker) e o “Delirious New York”. Depois passou a ter o “Small Medium Large x-Large”. “A gente vai lendo. Ao fim de seis meses, apercebes-te que já tens a obra mais ou menos, mas que estás a ficar tenso. Aquilo é uma coisa que te afecta”. Depois vem a fase de decidir efectivamente fazer a obra “x”, em que se pede o dinheiro. É aqui que o criador põe tudo no papel. E depois vem a concretização. “Quando vais para o estúdio fazer a obra é a terapia. Depois da incubação, depois do diagnóstico, vem a terapia para te curar”. E, por fim, a estreia. “O momento da estreia é o momento em que estás curado. Estás curado, acabou, tiraste aquilo do sistema. A criação é mesmo daquelas coisas que é criar ou morrer”. E, ao sétimo dia, descansa, fica muito tranquilo, um bocado apático durante uns tempos, porque ficou curado. E depois começa a vir outra incubação, mais um vírus, mais um vírus…

Inês Branco, Julho de 2007

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