22.6.07

Entrevista com Miguel Duarte Sobre a Crise Política na Turquia - 2.ª Parte

Esta é a segunda parte da entrevista com Miguel Cunha Duarte (MD), Presidente do Movimento Liberal Social (MLS) sobre os problemas políticos da Turquia e os entraves à entrada na União Europeia (EU)


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IB: Há também o problema dos rebeldes separatistas curdos do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão)? Como é que vês este problema associado aos outros dois?

MD: Há curdos no Iraque e em determinadas zonas da Turquia há um maior número de curdos. Mas também há curdos espalhados pela Turquia. Em Istambul também já existe um grande número de curdos. Neste momento, quando se fala eventualmente numa independência é algo muito complicado, porque eles, em busca de um melhor nível de vida saíram da zona próxima da fronteira com o Iraque para Istambul e para outras grandes cidades da Turquia.

Penso que a solução passa por dar-lhes mais liberdade de expressão e passa pela possibilidade de falarem a sua língua, terem meios de comunicação na sua língua e de ter os seus partidos políticos. Por exemplo, há pouco tempo, numa campanha eleitoral houve curdos que foram presos por estar a fazer campanha política na língua curda em vez de em turco.

Sob este ponto de vista é um problema de liberdade de expressão que existe na Turquia. Claro que também não vejo com bons olhos o terrorismo que tem sido praticado pelo PKK e inclusivamente agora por causa do Iraque. No Iraque a zona curda está já é semi-independente e é nessa zona que existe grande quantidade de petróleo e há dinheiro, vindo das receitas que estão a ser geradas na zona curda do Iraque, que está a ser usado para praticar actos de terrorismo na Turquia. Também está a ser uma base a nível dos terroristas para estarem no Iraque. O exército turco já afirmou que poderia invadir o Iraque em caso de mais ataques, o que, mesmo a nível internacional seria algo muito perigoso. Imagine-se o que seria a Turquia agora também entrar na guerra do Iraque, invadindo a zona curda que é, por coincidência, a zona mais estável dentro das várias zonas que existem no Iraque. É um problema que é bastante grave e que pode ter repercussões no médio oriente a vários níveis.

IB: Para além do problema do Curdistão, temos a questão de Chipre. A Turquia não reconhece o Chipre, o que é mais um entrave à entrada na Turquia na União Europeia.

MD: É verdade. Neste momento o Chipre está separado. Temos uma zona grega, que é aquilo que se conhece por Chipre na Europa e que aderiu à União Europeia recentemente e temos a zona turca ou de maioria turca, que a Turquia reconhece ser um estado independente, mas o resto da comunidade internacional não reconhece.

Houve no ano passado um referendo promovido pela Nações Unidas, em que foi perguntado a ambas as partes do Chipre se concordavam com um acordo das Nações Unidas. Aquilo que a União Europeia esperava na altura e foi por isso que o Chipre grego entrou para a EU era que ambas as partes ou aceitavam esse acordo ou a parte grega aceitava esse acordo e a parte turca rejeitava-o, mas curiosamente aconteceu o contrário. A parte turca aceitou o acordo, mas a parte grega rejeitou-o e, no fim, a parte que foi recompensada foi a parte grega.

A Turquia é um país nacionalista, a Grécia é um país nacionalista e também é uma situação de muito difícil resolução. Há questões que têm a ver com os bens das pessoas. Houve casas de gregos que fugiram na altura da guerra e que estão na parte turca, que entretanto forma vendidas a ingleses e os gregos querem as suas casas de volta. Existem muitas questões que vão ter de ser resolvidas e de facto, são um grande entrave à entrada da Turquia na EU, até porque a própria Turquia não reconhece o Chipre grego e não abre os seus portos e a EU quer obrigá-la a fazê-lo. Este é mais um dos obstáculos e é dificultado por nacionalismo de ambos os lados. Como agora o Chipre faz parte da EU também tem poder de veto, que vem agravar ainda mais o problema de uma eventual adesão no futuro da Turquia à EU.

IB: Vários membros do MLS, quando foi a segunda volta das eleições em França preferiram o Sarkozy à Ségolène Royal. No entanto, a França com a vitória de Sarkozy opõem-se à entrada da Turquia. Vês alguma razão nesta posição de oposição?

MD: Nenhum dos candidatos que foram à segunda volta das eleições presidenciais francesas eram candidatos liberais. Um dos candidatos, o Sarkozy, é claramente conservador e a Ségolène Royal é socialista. Portanto, de um ponto de vista liberal ambos os candidatos estavam muito longe de ser o ideal.

IB: O candidato apoiado pelo MLS seria o François Bayrou, não era?

MD: Exactamente. Foi também o candidato aprovado por um partido que nasceu recentemente em França, que é um partido liberal. Mas eles próprios também admitiram que os outros dois candidatos não eram aceitáveis. Os membros dos MLS que quiseram apoiar o Sarkozy fizeram-no apenas por uma razão, é todos sabemos que a França está em muito má situação económica e isso influencia a Europa e, portanto influencia o nosso país. O Sarkozy é o único candidato que, a nível económico, é liberal e quer mudar drasticamente a situação em França. No âmbito das liberdades individuais é um candidato conservador, mas quanto à Economia é o candidato que se propõe de facto a mudar alguma coisa em França. Vamos a ver se o consegue.

Já Royal não iria trazer nada de novo e de grandes mudanças à economia francesa e, como tal, aqueles que decidiram apoiar o Sarkozy, não a consideraram uma candidata que devesse ser apoiada. Foi simplesmente essa a razão. Em política tem de se fazer escolhas.

IB: E quanto a esta oposição da França à entrada da Turquia?

MD: Os liberais apoiam a entrada da Turquia na União Europeia e tem sido uma posição os partidos liberais a nível europeu, por isso discordamos de Sarkozy. No entanto, até a Turquia entrar na EU, claramente a Turquia tem de estar preparada para entrar na EU, que ainda não está, ainda há muita coisa que tem de mudar na Turquia e a própria EU tem de se preparar para isso.

IB: Para finalizar, qual pensas ser o futuro da Turquia?

MD: Penso que a Turquia ainda vai passar por alguma turbulência a nível político. As próximas eleições na Turquia vão retirar poder ao actual partido que está no governo e as negociações com a Europa irão continuar ainda durante muitos anos e, se calhar, só daqui a dez ou vinte anos poderemos estar a pensar numa Turquia que possa aderir à EU. Muita coisa há-de mudar na Turquia. A Turquia há-de evoluir economicamente, as pessoas que são emigrantes recentes nas cidades se calhar vão tornar-se menos radicais. O Islamismo também vai mudar, não só na Turquia, mas um pouco por todo o mundo. A Turquia ainda tem um longo caminho a percorrer até poder entrar na EU, infelizmente…

IB: Apesar de ser considerada uma economia muito promissora, com capacidade de igualar países como o Brasil, Rússia, Índia e China. Mesmo apesar disso, tem de ter grandes melhorias. Vinte anos parecem imenso tempo, mas será esse o tempo necessário para que a Turquia possa estabilizar-se?

MD: Antes disso não creio, porque de facto se formos à Turquia, viajarmos por lá, verificamos que as principais cidades estão muito desenvolvidas. Istambul poderia perfeitamente entrar para a EU amanhã, porque é mais desenvolvida do que muitas regiões da Polónia, que já faz parte da EU. Mas existem outras regiões da Turquia em que se vê que é claramente um país em desenvolvimento. Mais as diferenças culturais, e outras muito significativas, estão a causar problemas com a Europa e os problemas que ainda temos a nível de Constituição da Europa, que ainda não foi aprovada… Há muita coisa que tem de mudar para que a Europa possa receber a Turquia e sem medos. Aquilo que se vê na Europa é que há um grande medo por parte de muitas das pessoas que fazem parte da EU relativamente à Turquia.

5.6.07

Entrevista com Miguel Duarte Sobre a Crise Política na Turquia - 1.ª Parte


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IB: Hoje tenho comigo o Miguel Cunha Duarte (MD), Presidente do Movimento Liberal Social (MLS) e o tema escolhido é a Turquia.

No dia 30 de Maio, numa entrevista ao jornal italiano La Stampa, o secretário de estado do Vaticano, Cardeal Bertone revelou que a igreja católica é favorável à entrada da Turquia na União Europeia.
As relações entre o Vaticano e a Turquia têm vindo a evoluir. Em 2004, o então cardeal Ratzinger pronunciou-se contra a entrada da Turquia na União Europeia e, em Setembro de 2006, houve uma crise devido ao discurso do Papa em Ratisbona, durante uma viagem à Alemanha. Já em Dezembro de 2006, o Papa foi à Turquia e rezou na Mesquita Azul de Istambul, num gesto de “amizade e tolerância”. Em Janeiro, o Papa homenageou o “compromisso da Turquia em favor da paz”, lembrando o seu “papel de ponte” entre a Ásia e a Europa e de “cruzamento entre as culturas e as religiões”. E agora o secretário do Vaticano revela a que a igreja católica é favorável à entrada da Turquia.

Qual a interpretação que fazes desta "mudança de atitude" da igreja católica?




MD: Penso que, acima de tudo, devem ser questões políticas. No entanto, recebo de bom agrado essa posição da igreja católica, porque a União Europeia não é um espaço reservado a uma única religião. Deve estar aberta a países de qualquer religião maioritária.

IB: Mas houve uma mudança de atitude…

MD: Fico surpreendido, porque não é do meu conhecimento de que tenha havido qualquer mudança no Vaticano relativamente a este tema.

IB: Tem havido uma crise política na Turquia que está a afectar o processo de entrada na União Europeia.

Fazendo um resumo. Na Turquia a religião predominante é o Islamismo, porém o país é secular, ou seja, existe uma dominação da religião pelo Estado (algo diferente da separação entre Igreja e Estado que temos nos Estados laicos ocidentais), o que afasta a Turquia do resto do mundo islâmico.

No passado dia 24 de abril, o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan anunciou que Abdullah Gul, ministro das relações exteriores, seria o candidato do seu partido (AKP - Partido da Justiça e do Desenvolvimento) à presidência do país. Gul, assim como Erdogan, é um islamista moderado, porém fez questão de afirmar que, caso eleito, seria fiel aos princípios básicos da República, isto é, ao Estado democrático e secular. Contudo, as correntes ultra-secularistas turcas, inclusive nas lideranças militares, levantaram-se contra o apoio do parlamento a um candidato islamista, por considerá-lo antitético ao tradicional secularismo da Turquia e ao legado de Ataturk.

O partido AKP, que chegou ao poder em 2002, rejeitou o seu passado islamista e definiu-se como conservador, porém os seus membros islâmicos desejam que a Turquia abandone as restrições à liberdade religiosa. Dessa maneira, abraçaram um projecto de liberalização do país, defendendo a entrada da Turquia na União Europeia, o livre mercado e as liberdades individuais. Os seus opositores, portanto, que defendem a manutenção do secularismo acabaram por adoptar uma postura anti-Ocidente, anti-liberal e anti-americana.
No dia 27 de Abril, Abdullah Gul não conseguiu votos suficientes para ser eleito presidente da Turquia na primeira volta. Devido a pressões da oposição, a votação foi considerada nula pela corte constitucional. Paralelamente ao desenrolar das questões políticas no parlamento turco, as tensões entre os secularistas e os islamistas moderados alcançaram as ruas em ondas de protestos que envolveram actividades de violência e prisões de centenas de pessoas. Abdullah Gul sucumbiu à pressão dos opositores secularistas e dos militares turcos, renunciando à sua candidatura.

No dia 25 de Maio, o Presidente da Turquia, Ahmet Necdet Sezer, rejeitou a eleição do próximo chefe de Estado por sufrágio universal, reenviando para o Parlamento um conjunto de emendas que incluem essa decisão. As modificações da Lei Fundamental foram preparadas pelo AKP e adoptadas no dia 10 de Maio. Se o Parlamento adoptar outra vez a sua primeira decisão, Sezer não poderá opor-se uma segunda vez, mas pode convocar um referendo.

Portanto, um Estado turco mais “islamizado” seria, à primeira vista, um factor complicador para a integração do país, porém o partido AKP, desde que está no poder, tem feito de tudo para incrementar os laços com a União Europeia e acelerar o processo de admissão da Turquia.

Que consequências a recente crise política turca terá para o processo de entrada na União Europeia? Será que existe actualmente, o risco de quebra da democracia turca, caso os secularistas imponham a sua vontade por outros caminhos que não o das urnas?


MD: A Turquia é um país peculiar e a situação actual é muito complicada. A posição dos secularistas (ou dos laicos, como se diz no resto da Europa) é de que quem islâmico queira tomar o poder, queira dar uma volta na Constituição e queira cortar as liberdades às pessoas. Esse é o grande medo. Sabem que isso não vai acontecer amanhã ou dentro de um ano, mas existe o receio de que lentamente as liberdades vão sendo retiradas.

Existem exemplos de que membros do actual partido que está no governo, em algumas cidades, proibiram o consumo de álcool e tomaram outro tipo de medidas, todas com base nos preceitos islâmicos. Houve uma proposta, que não chegou a ser aprovada na Turquia, devido ao “barulho” que criou, em que se queria tornar o adultério um crime. Isto é algo que para nós, no Ocidente, não é minimamente aceitável.

É evidente que, se este tipo de leis, continuar a ser aprovado, mesmo com o actual partido AKP, a Turquia nunca entrará na União Europeia (UE), porque a UE não vai aceitar que um Estado islâmico, que de facto corte as liberdades individuais, entre para UE.
Por outro lado, é verdade que a Turquia, para entrar para a UE, tem de ser uma democracia sólida. No entanto, o actual sistema eleitoral foi aquele que permitiu que o partido que está actualmente no poder esteja com uma maioria de quase dois terços no Parlamento. É um sistema eleitoral imperfeito, que atribui a um partido que tinha 30 por cento dos votos essa maioria mais do que absoluta. Este sistema eleitoral “corta” a entrada no Parlamento a todos os partidos que não tenham 10 por cento dos votos.

O que se vê na Turquia, neste momento, é luta de forças democráticas, que têm uma visão diferente do futuro da Turquia. A população turca não se sente sequer representada no actual governo e sente-se ameaçada.

Não creio que a Turquia entre na “Europa” nos próximos vinte anos. De uma forma ou de outra será ameaçada. O actual governo turco conseguiu melhorar muito a economia da Turquia e isso é algo positivo e tem tentado implementar muitas medidas impostas pela UE. Aos islamistas estas liberdades são algo que interessa, porque mesmo para eles não há uma grande liberdade religiosa. O Estado controla a religião. Apesar de haver um número enorme de mesquitas, há limitação à abertura de novas mesquitas, à liberdade de expressão de quem fala nas mesquitas.

No entanto, isto não é algo inédito. Em França é o que está a acontecer. O governo francês está a envolver-se na religião muçulmana e a tentar controlar de alguma forma o islamismo radical.

IB: Mas isso, à partida seria bom, não? As pessoas devem ter independência religiosa até certos limites. Quando existe radicalismo e quando as práticas religiosas vão contra as liberdades de cada um, deverão ser controladas. Pensas que essa intervenção do Estado é nociva?

MD: Eu, como liberal, defendo a liberdade de expressão e acho que no mundo ideal o Estado não se devia envolver nos assuntos religiosos. O problema é que temos observado que há, por vezes, uma tendência para o radicalismo e para que este se torne agressivo e perigoso, chegando a implicar actos terroristas.

IB: No caso da excisão feminina houve quem sugerisse que isso passasse a ser feito em hospitais. Por um lado, parece uma coisa completamente aberrante continuar a haver excisão feminina. Por outro, uma vez que previam que isso continuasse a acontecer clandestinamente, que pelo menos fosse feita em condições nos hospitais. Aqui a intervenção do Estado era numa tentativa esses efeitos nocivos que uma prática religiosa teria para cada uma das cidadãs. Elas não são livres de não a fazer, é imposta pela própria religião.

MD: Em relação à excisão sou completamente contra por ser praticada em crianças e não me parece aceitável que possam ser os pais de uma criança a determinar acabar com a sexualidade da sua filha.

IB: Mas só pela forma como é feita é uma coisa completamente bárbara…

MD: Sim, é bárbaro. A excisão feminina é cortar o clitóris a uma mulher.

IB: Sem anestesia.

Continua no próximo programa.