5.3.10

O imigrante como o Outro

Inês Branco - em Fevereiro de 2010

Portugal tem vivido nas últimas décadas fortes transformações demográficas, tendo passado de país de emigração a país de imigração. O nosso país é hoje caracterizado por uma grande diversidade, que representa uma maior riqueza em termos demográficos, económicos e culturais. Mas é esta mesma diversidade que coloca a Portugal novos desafios que resultam numa maior necessidade de promoção da coesão social e da gestão da diversidade cultural.

As construções que os media dos países que acolhem os imigrantes fazem destes são críticas em influenciar o tipo de recepção que estes têm e, assim, condicionam uma eventual experiência de inclusão ou exclusão dos imigrantes. Muitas vezes agindo como porta-vozes de partidos políticos ou de outros grupos de poder, o discurso dos media tem demonstrado ser imensamente influenciador da construção dos imigrantes como os Outros e, muitas vezes, também como “criminosos” ou “indesejados”. Este foco na criminalidade imigrante cria estereótipos que estão muito longe da verdade e que são muito difíceis de desarreigar.

Esta questão leva-me à reflexão do imigrante como Outro.

Se “o outro é sempre inquietante, é sempre o mais inquietante” (Marcos, 2004), então o imigrante, retratado com o Outro é inquietante, porque “ameaça a inércia do igual, introduz a incoerência, provoca a contradição”. Numa entrevista da Alta Comissária para a Imigração e Diálogo Intercultural em 2009, este factor fica bem explícito nesta frase “Sim, com vizinhos há sempre questões porque todos têm receio, ninguém gosta do que não conhece e há anticorpos quando uma família de imigrantes vai viver para um bairro. Há comportamentos racistas e discriminatórios até as pessoas se começarem a conhecer”. Mas será que, neste momento em que o Mesmo conhece o Outro, o Outro passa a ser o Mesmo e, portanto, deixa de ser alvo de comportamentos racistas e discriminatórios? O Outro será sempre o Outro. Um imigrante é um sujeito com uma cultura, uma identidade que o identifica como Outro, mas deixa de ser visto como só mais um indivíduo dentro de uma categoria, para ser entendido como um “sujeito auto-afirmativo”, segundo o conceito filosófico herdado do paradigma kantiano, que não coincide com o termo “indivíduo”, significativo de uma prática a-social (Marcos, 2004). Esta visão do Outro é frequentemente veiculada pelos media: “Polícia de Beja agredido por indivíduo de etnia Cigana”. Neste artigo o Outro é retratado como um indivíduo genérico que só é definido por pertencer a uma categoria: etnia Cigana. A partir do momento em que o Mesmo começa a conhecer o Outro, a diferença neutraliza-se. Ainda assim, falar do conhecimento do Outro é de certo modo abusivo. A não transparência absoluta do Outro é condição da sua afirmação enquanto Outro (Marcos, 2004).

Só quando existe um trabalho de reconhecimento, o Outro se pode afirmar como sujeito singular, mesmo que inscrito num universo de semelhantes. Reconhecimento das suas capacidades, que o tornam um sujeito singular dentro da comunidade imigrante à qual pertence, “Portugal reconhece os imigrantes qualificados?” (anexo 1). Através do reconhecimento de qualificações, o imigrante como um Outro passa de mero indivíduo pertencente a uma categoria, a um sujeito livre, responsável, com uma profissão, com qualificações. Isto leva-nos à questão da “cidadania” e à constatação de que este conceito não pode ser observado à parte do conceito de “reconhecimento” (Costa, 1997). A cidadania é um status outorgado a cada ser humano mediantes a concessão de direitos civis, políticos e sociais (Zapata-Barrero, 2001). O reconhecimento surge como forma de introduzir nas questões que envolvem a acessibilidade aos bens materiais e imateriais que circulam no espaço público, alguns critérios e procedimentos que promovam a inclusão de grupos socioculturais minoritários, que se encontram em desvantagem, na distribuição de bens (Costa, 1997).

A contraposição da política de reconhecimento da igualdade das culturas à igualdade dos sujeitos é feita por Charles Taylor. Segundo o autor, a cultura é preexistente, pois o sujeito existe em função da sua cultura singular e diferenciada. Taylor constrói as suas concepções em relação aos problemas das acções humanas no espaço de convívio entre diversos grupos em torno do problema da identidade (Taylor, 1997). O reconhecimento é a componente nuclear da formação ética do sujeito. Taylor abordou o tema do reconhecimento a partir das teorias do reconhecimento de Hegel, fonte imediata destas teorias.

Hegel põe em evidência o problema da base ética da solidariedade social, por oposição à moralidade. Com base nisto, Taylor afirma que o facto de a nossa identidade ser formada, em parte, pela existência ou inexistência de reconhecimento e, muitas vezes, pelo reconhecimento incorrecto dos outros, uma pessoa ou grupo de pessoas podem ser realmente prejudicados, serem alvo de uma verdadeira distorção, se aqueles que os rodeiam reflectirem uma imagem limitativa, de inferioridade ou de desprezo por eles mesmos. O reconhecimento incorrecto não implica só uma falta de reconhecimento devido. Pode também marcar as suas vítimas de forma cruel, subjugando-as através de um sentimento incapacitante de um ódio contra elas mesmas. Por isso, o respeito devido não é um acto de gentileza para com os outros. É uma necessidade humana vital (Taylor, 1998). Daqui decorre a responsabilidade que os media têm no criar de uma imagem dos imigrantes, pois é através deles que se cria também uma imagem na opinião pública.

Axel Honneth afirma que a exclusão social (a inacessibilidade) é mais do que uma limitação à autonomia individual, põe os sujeitos em desvantagem, pois quebra-se o sentimento de pertença deste em relação aos restantes. A negação de direitos ou a falta de acesso a um sistema de normas legitimadas pela sociedade lesa o auto-respeito dos sujeitos, pois dá-se uma perda de capacidade de se referirem a si próprios como parceiros em pé de igualdade com todos os próximos. Seguindo Hegel e Mead, Honneth distingue o reconhecimento recíproco com o que designa por estima social (Honneth, 2003).

A questão do reconhecimento e da relação entre sujeitos pode pôr-se também ao nível das suas culturas. O fenómeno das migrações e a globalização reflecte-se no intensificar da interdependência entre países, intensificando também a necessidade de um diálogo entre culturas diferentes. Quando se fala em trocas entre diferentes culturas e não apenas entre saberes, é porque existe “diálogo intercultural” . Boaventura Sousa Santos propõe a utilização de uma “hermenêutica diatópica” como procedimento guia, ou seja, uma interpretação da outra cultura, levando em conta que a nossa própria cultura não é completa.

Na área dos direitos humanos e da dignidade humana, a mobilização de apoio social para as possibilidades e exigências emancipatórias que eles contêm, só será concretizável na medida em que tais possibilidades e exigências tiverem sido apropriadas e absorvidas pelo contexto cultural local. Apropriação e absorção, neste sentido, não podem ser obtidas através da canibalização cultural. Requerem um diálogo intercultural e uma hermenêutica diatópica.

A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os “topoi” de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Os “topoi” são premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam possível a produção e a troca de argumentos. A incompletude dos “topoi” não é visível do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objectivo da hermenêutica diatópica é ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisto reside o seu carácter dia-tópico. Um exemplo de hermenêutica diatópica, que Boaventura Sousa Santos apresenta, é a que pode ter lugar entre a cultura ocidental, a cultura hindu e a cultura islâmica, quando se fala em direitos humanos.

A hermenêutica diatópica mostra-nos que a fraqueza fundamental da cultura ocidental consiste em estabelecer dicotomias demasiado rígidas entre o indivíduo e a sociedade, tornando-se assim vulnerável ao individualismo possessivo, ao narcisismo, à alienação e inexistência de uma lei. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e islâmica deve-se ao facto de nenhuma delas reconhecer que o sofrimento humano tem uma dimensão individual irredutível, a qual só pode ser adequadamente considerada numa sociedade não hierarquicamente organizada.

Assim, para que possa existir diálogo intercultural, é necessário que cada cultura reconheça as suas incompletudes, especialmente, no diálogo entre culturas que partilham um passado de trocas desiguais, em que uma foi moldada pela outra, como é o caso de países colonizadores e ex-colónias.

O segundo imperativo intercultural, e o mais difícil de atingir e obter para que possa existir diálogo intercultural, é o de, em concepções concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos sociais terem o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza (Sousa Santos, 1997).

Bibliografia:

Costa, Sérgio e Werle, Luís Denílson. “Liberais, comunitaristas e as relações raciais no Brasil”. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, N. 49, p. 159-180, 1997.

Honnet, Axel. “Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais”. São Paulo: Editora 34, 2003.

Marcos, Maria Lucília. “Princípio da Relação e Paradigma Comunicacional”. Cadernos Universitários. Edições Colibri, 2007.

Santos, Boaventura de Sousa. "Por uma concepção multicultural de direitos humanos". In Revista Lua Nova n.º 39. São Paulo, CEDEC, 1997.

Taylor, Charles. “A Política do Reconhecimento in Multiculturalismo. Lisboa. Piaget, 1998.

Taylor, Charles. “As fontes do self: a construção da identidade moderna”. São Paulo: Loyola, 1997.

Zapata-Barrero, Ricaros. “Ciudadania, democracia y pluralismo cultural: hacia un nuevo contrato social”. Libros de La Revista Anthropos. Barcelona: Anthropos, 2001.