11.11.09

Sessões des(contínuas)



Crónica publicada no livro As Extraordinárias Aventuras da Justiça Portuguesa, de Sofia Pinto Coelho e na editora online Sexo Forte.


Quem entrasse na sala de tribunal via que eram só dois ou três gatos-pingados sentados lá no fundo, nos bancos de pau a imitar os de uma igreja. Só faltavam os genuflexórios agarrados aos bancos da frente. A sala era grande. Em frente à porta, uma parede atravessada por uma fila de janelas permitia a entrada da luz do dia. Do lado direito estavam umas mesas de madeira situadas alguns centímetros acima do nível dos pés. Mais abaixo, outra mesa com um computador quase tão velho como a madeira, perfeitamente integrado no resto da decoração, especialmente concebida para conferir ao espaço um ar antiquado, de tempos passados.

Em passo apressado, fui sentar-me perto de quem já lá estava. Voltei-me para trás e pedi alguns esclarecimentos:
- Já começou há muito tempo?
- Não.
- Vai haver vários julgamentos, não é?
- Sim. São sessões contínuas.
- São jornalistas?
- Não, polícias. Somos testemunhas num processo. Mas, até ser o nosso, podemos assistir aos outros julgamentos.

Entrou um jovem na sala. Com ar descontraído, sentou-se na primeira fila. De seguida entrou uma jovem. Esta, um pouco mais agitada. Aproximou-se da mesa do meio, estendeu a mão e apertou a da senhora loira.

- Sabe quem são? - Perguntou-me um dos polícias.
- Faço uma ideia.
- À esquerda, é a Procuradora do Ministério Público.
- A acusação?
- Sim. Ao meio…
- É a juíza.
- Em baixo é o escrivão e à direita a advogada de defesa. Na primeira fila está o arguido.

Com uma expressão benevolente, a juíza começou o julgamento. Nome, data de nascimento, naturalidade, profissão, estado civil, número de filhos.

- O que chamou aos agentes?
- Nada. Nada mesmo. Isso não aconteceu.
- Não foi preso?

Entrou um homem de roupa desportiva e colar de missangas ao pescoço. Era um dos agentes da PSP.

- Foi testemunha e ofendido?
- Sim.
- Onde aconteceu?
- Na zona J.
- Qual a razão da abordagem?
- Não abordámos. O Sr. Ernesto ausentou-se do local.
- Qual foi o motivo?
- Estávamos de patrulha e ouvimos impropérios. Se me permitir posso dizê-los.
- Permito. Tem de ser.

Tapei os ouvidos.

- Ainda se sente ofendido?
- Sim…
- Foram no encalço dele?
- Atravessámos a artéria. O Sr. E apercebeu-se de que o íamos abordar e fugiu, continuando com os impropérios.

Encalço, artéria, abordagem, impropérios… A advogada olhava com ar intrigado. A acusação resolveu intervir.

- Abordaram-nos sem nenhuma razão?
- Sim. Íamos a passar e começaram-nos a injuriar sem razão.
- Mas a que propósito?
- Não faço a mínima ideia.

O caso afigurava-se difícil. Alguém de um bairro “desfavorecido”de Lisboa tinha chamado nomes às autoridades. Foi a vez de a defesa intervir.

- Passou-se a que horas?
- Uma e meia da manhã.
- Havia mais pessoas?
- Sim.
- A que distância?
- Não posso precisar.

O agente vacilou, mas a advogada não.

- Mais ou menos?
- Vinte, trinta metros.
- Consegue identificá-los.

Silêncio.

- Precisa-se da comparência da outra testemunha. A audiência terá de ser adiada.

A juíza era uma mulher de gosto refinado. Os punhos brancos que poderiam ter sido do Marquês de Pombal e que teimavam em aparecer, sobrepondo-se às mangas da toga negra, revelavam-no. Comecei a perceber tudo. Não passava de uma questão de estética. O estilo antigo e repassado pelos anos tinha de condizer em toda a linha. Até as palavras eram antigas. E o caso não poderia destoar. Era preciso deixá-lo envelhecer. Venha o próximo!