18.8.07

Gastronomia Molecular - Reportagem



Gastronomia ou Experiência Científica

Muito daquilo que fazemos ao preparar um prato pode ser descodificado pela ciência, tendo por base a composição dos alimentos e as alterações físicas e químicas que ocorrem durante a sua preparação. Quando a Física e a Química deixam o laboratório e entram na cozinha, o que acontece?


Numa das salas do Instituto Superior de Agronomia (ISA) o curso vai começar. Este já é o terceiro dia em que se repete. Os dois primeiros esgotaram. Aqui vão ser abordadas questões da gastronomia do ponto de vista científico, onde as moléculas são o centro das atenções. Estamos num curso de Gastronomia Molecular.

Antes de começar, faz-se a apresentação dos professores. São um grupo que se encontrou em 2001 no projecto “A Cozinha é um Laboratório”, da agência Ciência Viva, uma unidade do Ministério da Ciência e da Tecnologia, que visa a promoção da cultura científica e tecnológica junto da população portuguesa. Na altura, o objectivo era divulgar a ciência de uma forma “saborosa”. As suas formações são diversas. Paulina Mata, Margarida Guerreiro, Catarina Prisca e Conceição Loureiro-Dias têm formação em química e engenharia química. Joana Moura é arquitecta paisagista e bolseira do ISA na área de Gastronomia Molecular. O grupo deu-se bem e, hoje, continua junto, partilhando o interesse pelas bases científicas da cozinha.

Do outro lado, a assistir ao curso, também estão pessoas de diferentes áreas. O chefe de cozinha e a pasteleira do Casino de Lisboa, o sub-chefe de cozinha do hotel Cascais Mirage e o chefe de cozinha do Hotel Avis marcam presença, tendo como objectivo comum o aprofundar de conhecimentos nesta área para aplicação no seu dia-a-dia.

A aula inicia-se e a questão impõe-se: porquê molecular? No entanto, a resposta é simples: “Todos os alimentos são constituídos por átomos que se ligam formando moléculas. Quem cozinha manipula o movimento das moléculas, as suas ligações e alterações e a quantidade e o processo de transferência de calor”, esclarece Margarida Guerreiro, procurando desmistificar esta nomenclatura e outros dos “medos” de quem contacta pela primeira vez com esta ciência, a utilização de químicos. Qual o elemento essencial na cozinha? “A água. A água é um mundo. Somos nós. A par do cloreto de sódio é o reagente mais simples”. Afinal a água é um composto químico, duas moléculas de hidrogénio e uma de oxigénio. Utilizamo-la todos os dias. Se pretendermos grandes e rápidas alterações químicas, basta subir a temperatura para aumentar o movimento das moléculas. É esta a explicação por trás de um acto quotidiano tantas vezes repetido: se queremos que o leite aqueça mais rápido, basta rodar o botão do fogão.

Da teoria passa-se à prática. Estamos agora num dos laboratórios do instituto. Em cima das bancadas vêem-se desde varinhas mágicas e batedeiras, a tubos de ensaio e pipetas. Joana Moura apresenta o alginato, o xantano e o gluco. Não passam de pós. Começa-se por fazer uma solução de alginato com chá. Sob o olhar atento dos chefes de cozinha, explica “Fica com ar. Tem de se esperar duas horas. Ou colocar numa máquina de vácuo”. Passa-se à metilcelulose: “Só se dissolve a frio, mas só dispersa a quente. No entanto, se aplicarmos força motora não é preciso aquecer. Como incorpora muito ar, tem de repousar a frio”.

João Fernandes é aluno do curso de Cozinha e Pastelaria da Escola de Hotelaria de Lisboa. Quando interrogado sobre a razão que o leva a estar aqui, responde: “Tendo em conta que os quatro melhores restaurantes do Mundo utilizam os conhecimentos da Gastronomia Molecular aplicados à cozinha, parece-me importante vir adquirir tais conhecimentos. Por outro lado, este é o único instituto em Portugal a leccionar cursos nesta área”. Depois de ouvir as explicações, passa à acção. O objectivo é fazer pequenas esferas utilizando uma solução de sumo com xantano a 0,3 por cento e gluco a 2,5 por cento. Na Gastronomia Molecular a precisão nas proporções e nas quantidades é crucial. Quem a queira praticar, para além de ter uma balança de precisão, deverá ser bom a matemática. A famosa “regra de três simples” é utilizada todos os dias, pois só com ela se poderão manter as proporções.

Mas o interesse por esta “ciência” não passa só pelos profissionais de cozinha. Maria Leonor Souza é responsável pelas publicações culinárias da Unilever – Jerónimo Martins. O que a leva a frequentar este curso é o interesse por estes temas e o factor “novidade”: “É uma maneira diferente de abordar o acto de cozinhar e a combinação dos sabores e das texturas. É uma área que ainda está pouco explorada e que é muito interessante. O meu objectivo é entusiasmar as pessoas. Agora está a renascer um entusiasmo grande pela cozinha e cozinhar está na moda ”.

Continua, ela também, a seguir a receita. Feitas as esferas, deitam-se na solução de alginato, deixando repousar durante 3 minutos. Passado este tempo, o resultado está à vista: pequenas bolinhas de aspecto gelatinoso, assemelhando-se a gomas. Quando levadas à boca, rebentam, libertando o sumo. O efeito surpresa é plenamente alcançado. “É este o objectivo da Gastronomia Molecular: surpreender através da diferença nas texturas e da atractividade visual”, explica Margarida Guerreiro, acrescentando que “A novidade neste mundo globalizado em que podemos experimentar a gastronomia de países tão diversos como o Tibete ou o Brasil dentro da mesma cidade, já não está nos sabores. Ela surge da colaboração entre cozinheiros e cientistas que inventam novas texturas e introduzem novas cores”. Assim, para conseguir estes efeitos, novas técnicas e substâncias são utilizadas. O azoto líquido, por exemplo, serve para dar uma consistência mais cremosa aos gelados; a peelenzima consegue descascar um citrino sozinha e os transglutaminases dão para colar alimentos que tenham proteínas. Uma das professoras sugere “Experimentem juntar galinha com atum!”.

O medo dos “E”

Muitas destas substâncias são também designadas por “E”. Não se estarão a utilizar produtos prejudiciais à saúde? “Tudo o que é ingerido em demasia faz mal. Se comermos um quilo de amêndoas, não vamos de certeza passar bem, pois embora em quantidades muito pequenas, têm cianeto”, esclarece Catarina Prisca e Joana Moura acrescenta: “Muitas destas substâncias são extraídas da natureza e já utilizadas há muito tempo em países como, por exemplo, a China”. Margarida Guerreiro conclui, afirmando: “Os espessantes não são cancerígenos. Nada está provado. Há uma grande desinformação”.

História

A denominada “Gastronomia Molecular” começou quando um físico e um químico se juntaram para perceber os processos que ocorriam na cozinha. Estávamos em 1988 e o trabalho de Nicholas Kurti e Hervé This demonstrou que muito daquilo que fazemos com base na experiência pode ser descodificado pela ciência, tendo por base a composição dos alimentos e as alterações físicas e químicas que ocorrem durante a sua preparação. É de Nicholas Kurti (o físico húngaro) a célebre frase “É preocupante que se saiba mais sobre a temperatura no interior das estrelas do que sobre a temperatura no interior de um prato de soufflé”.

Dicionário de substâncias espessantes, gelificantes e estabilizantes:

Espessante: permite aumentar a viscosidade de um alimento.

Gelificante: confere textura através da formação de um gel.

Estabilizante: contribui para dar uniformidade ou consistência a preparados.

Hidrocolóides: são colóides (substância semelhante a cola) com uma especial atracção pela água e que, quando em contacto com esta, agarra-a como que “aprisionando-a”.

Metilcelulose: é um dos aditivos alimentares permitidos pela legislação comunitária e americana, designado por E 461. É produzida industrialmente a partir da celulose.

Xantano: é um dos aditivos alimentares permitidos pela legislação comunitária e americana, designado por E 415, sendo utilizado desde 1969. É um polissacárido (hidrato de carbono muito grande) produzido pela bactéria Xanthomonas Campestris, frequente em folhas de couve, couve-flor e brócolos.

Alginato: é uma das substâncias mais abundantes na natureza. É um polissacárido extraído de algumas algas castanhas Phaeophyceae, principalmente de espécies do género Laminária.

Mais Informação

Blogue “Jo Cooking”: http://www.jocooking.typepad.com

Site “Ciência Viva”: http://www.cienciaviva.pt

Instituto Superior de Agronomia

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