5.6.07

Entrevista com Miguel Duarte Sobre a Crise Política na Turquia - 1.ª Parte


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IB: Hoje tenho comigo o Miguel Cunha Duarte (MD), Presidente do Movimento Liberal Social (MLS) e o tema escolhido é a Turquia.

No dia 30 de Maio, numa entrevista ao jornal italiano La Stampa, o secretário de estado do Vaticano, Cardeal Bertone revelou que a igreja católica é favorável à entrada da Turquia na União Europeia.
As relações entre o Vaticano e a Turquia têm vindo a evoluir. Em 2004, o então cardeal Ratzinger pronunciou-se contra a entrada da Turquia na União Europeia e, em Setembro de 2006, houve uma crise devido ao discurso do Papa em Ratisbona, durante uma viagem à Alemanha. Já em Dezembro de 2006, o Papa foi à Turquia e rezou na Mesquita Azul de Istambul, num gesto de “amizade e tolerância”. Em Janeiro, o Papa homenageou o “compromisso da Turquia em favor da paz”, lembrando o seu “papel de ponte” entre a Ásia e a Europa e de “cruzamento entre as culturas e as religiões”. E agora o secretário do Vaticano revela a que a igreja católica é favorável à entrada da Turquia.

Qual a interpretação que fazes desta "mudança de atitude" da igreja católica?




MD: Penso que, acima de tudo, devem ser questões políticas. No entanto, recebo de bom agrado essa posição da igreja católica, porque a União Europeia não é um espaço reservado a uma única religião. Deve estar aberta a países de qualquer religião maioritária.

IB: Mas houve uma mudança de atitude…

MD: Fico surpreendido, porque não é do meu conhecimento de que tenha havido qualquer mudança no Vaticano relativamente a este tema.

IB: Tem havido uma crise política na Turquia que está a afectar o processo de entrada na União Europeia.

Fazendo um resumo. Na Turquia a religião predominante é o Islamismo, porém o país é secular, ou seja, existe uma dominação da religião pelo Estado (algo diferente da separação entre Igreja e Estado que temos nos Estados laicos ocidentais), o que afasta a Turquia do resto do mundo islâmico.

No passado dia 24 de abril, o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan anunciou que Abdullah Gul, ministro das relações exteriores, seria o candidato do seu partido (AKP - Partido da Justiça e do Desenvolvimento) à presidência do país. Gul, assim como Erdogan, é um islamista moderado, porém fez questão de afirmar que, caso eleito, seria fiel aos princípios básicos da República, isto é, ao Estado democrático e secular. Contudo, as correntes ultra-secularistas turcas, inclusive nas lideranças militares, levantaram-se contra o apoio do parlamento a um candidato islamista, por considerá-lo antitético ao tradicional secularismo da Turquia e ao legado de Ataturk.

O partido AKP, que chegou ao poder em 2002, rejeitou o seu passado islamista e definiu-se como conservador, porém os seus membros islâmicos desejam que a Turquia abandone as restrições à liberdade religiosa. Dessa maneira, abraçaram um projecto de liberalização do país, defendendo a entrada da Turquia na União Europeia, o livre mercado e as liberdades individuais. Os seus opositores, portanto, que defendem a manutenção do secularismo acabaram por adoptar uma postura anti-Ocidente, anti-liberal e anti-americana.
No dia 27 de Abril, Abdullah Gul não conseguiu votos suficientes para ser eleito presidente da Turquia na primeira volta. Devido a pressões da oposição, a votação foi considerada nula pela corte constitucional. Paralelamente ao desenrolar das questões políticas no parlamento turco, as tensões entre os secularistas e os islamistas moderados alcançaram as ruas em ondas de protestos que envolveram actividades de violência e prisões de centenas de pessoas. Abdullah Gul sucumbiu à pressão dos opositores secularistas e dos militares turcos, renunciando à sua candidatura.

No dia 25 de Maio, o Presidente da Turquia, Ahmet Necdet Sezer, rejeitou a eleição do próximo chefe de Estado por sufrágio universal, reenviando para o Parlamento um conjunto de emendas que incluem essa decisão. As modificações da Lei Fundamental foram preparadas pelo AKP e adoptadas no dia 10 de Maio. Se o Parlamento adoptar outra vez a sua primeira decisão, Sezer não poderá opor-se uma segunda vez, mas pode convocar um referendo.

Portanto, um Estado turco mais “islamizado” seria, à primeira vista, um factor complicador para a integração do país, porém o partido AKP, desde que está no poder, tem feito de tudo para incrementar os laços com a União Europeia e acelerar o processo de admissão da Turquia.

Que consequências a recente crise política turca terá para o processo de entrada na União Europeia? Será que existe actualmente, o risco de quebra da democracia turca, caso os secularistas imponham a sua vontade por outros caminhos que não o das urnas?


MD: A Turquia é um país peculiar e a situação actual é muito complicada. A posição dos secularistas (ou dos laicos, como se diz no resto da Europa) é de que quem islâmico queira tomar o poder, queira dar uma volta na Constituição e queira cortar as liberdades às pessoas. Esse é o grande medo. Sabem que isso não vai acontecer amanhã ou dentro de um ano, mas existe o receio de que lentamente as liberdades vão sendo retiradas.

Existem exemplos de que membros do actual partido que está no governo, em algumas cidades, proibiram o consumo de álcool e tomaram outro tipo de medidas, todas com base nos preceitos islâmicos. Houve uma proposta, que não chegou a ser aprovada na Turquia, devido ao “barulho” que criou, em que se queria tornar o adultério um crime. Isto é algo que para nós, no Ocidente, não é minimamente aceitável.

É evidente que, se este tipo de leis, continuar a ser aprovado, mesmo com o actual partido AKP, a Turquia nunca entrará na União Europeia (UE), porque a UE não vai aceitar que um Estado islâmico, que de facto corte as liberdades individuais, entre para UE.
Por outro lado, é verdade que a Turquia, para entrar para a UE, tem de ser uma democracia sólida. No entanto, o actual sistema eleitoral foi aquele que permitiu que o partido que está actualmente no poder esteja com uma maioria de quase dois terços no Parlamento. É um sistema eleitoral imperfeito, que atribui a um partido que tinha 30 por cento dos votos essa maioria mais do que absoluta. Este sistema eleitoral “corta” a entrada no Parlamento a todos os partidos que não tenham 10 por cento dos votos.

O que se vê na Turquia, neste momento, é luta de forças democráticas, que têm uma visão diferente do futuro da Turquia. A população turca não se sente sequer representada no actual governo e sente-se ameaçada.

Não creio que a Turquia entre na “Europa” nos próximos vinte anos. De uma forma ou de outra será ameaçada. O actual governo turco conseguiu melhorar muito a economia da Turquia e isso é algo positivo e tem tentado implementar muitas medidas impostas pela UE. Aos islamistas estas liberdades são algo que interessa, porque mesmo para eles não há uma grande liberdade religiosa. O Estado controla a religião. Apesar de haver um número enorme de mesquitas, há limitação à abertura de novas mesquitas, à liberdade de expressão de quem fala nas mesquitas.

No entanto, isto não é algo inédito. Em França é o que está a acontecer. O governo francês está a envolver-se na religião muçulmana e a tentar controlar de alguma forma o islamismo radical.

IB: Mas isso, à partida seria bom, não? As pessoas devem ter independência religiosa até certos limites. Quando existe radicalismo e quando as práticas religiosas vão contra as liberdades de cada um, deverão ser controladas. Pensas que essa intervenção do Estado é nociva?

MD: Eu, como liberal, defendo a liberdade de expressão e acho que no mundo ideal o Estado não se devia envolver nos assuntos religiosos. O problema é que temos observado que há, por vezes, uma tendência para o radicalismo e para que este se torne agressivo e perigoso, chegando a implicar actos terroristas.

IB: No caso da excisão feminina houve quem sugerisse que isso passasse a ser feito em hospitais. Por um lado, parece uma coisa completamente aberrante continuar a haver excisão feminina. Por outro, uma vez que previam que isso continuasse a acontecer clandestinamente, que pelo menos fosse feita em condições nos hospitais. Aqui a intervenção do Estado era numa tentativa esses efeitos nocivos que uma prática religiosa teria para cada uma das cidadãs. Elas não são livres de não a fazer, é imposta pela própria religião.

MD: Em relação à excisão sou completamente contra por ser praticada em crianças e não me parece aceitável que possam ser os pais de uma criança a determinar acabar com a sexualidade da sua filha.

IB: Mas só pela forma como é feita é uma coisa completamente bárbara…

MD: Sim, é bárbaro. A excisão feminina é cortar o clitóris a uma mulher.

IB: Sem anestesia.

Continua no próximo programa.

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