27.8.07

Ricardo Quaresma - Perfil de um Mágico



“Mustang”, “Harry Potter” ou Ricardo Quaresma, qualquer um dos nomes serve para identificar este “jogador da bola”, que com apenas 23 anos já fez história no futebol português.

Começou no Sporting Clube de Portugal, onde se estreou na equipa principal com dezoito anos. Estávamos na época 2001/2002 e Laslo Boloni era então o treinador. Foi ele que baptizou Ricardo Quaresma com um nome que reflectia a raça e a rebeldia do jogador, “Mustang”. De simples rebelde a cavalo de raça, a história fez-se no entretanto e começou antes, bem antes, quando ainda andava na Escola Domingos Sávio. António Silva, o primeiro treinador diz que "só queria a bola para ele." Foi depois contratado pelo Sporting, após um “olheiro” o ver a fazer o tipo de passes que, ainda hoje, são a sua imagem de marca. Mais tarde fez sensação na selecção sub-16, a qual ganhou, em 2000, o Europeu em Israel. Mais uma vez houve alguém nas bancadas que o viu e o contratou. Desta vez, para fazer a pré-época no Sporting.

Em 2003, o Barcelona viria a pagar seis milhões de euros pela sua transferência. Mas a vida não lhe correu bem pelas terras da Catalunha. Em Maio desse mesmo ano, após 22 jogos, onze dos quais como titular, conflitos com o treinador e uma lesão no pé obrigaram-no a parar durante dois meses e foi então que resolveu voltar a Portugal, sem cumprir o contrato de quatro anos em Espanha.

Em terras lusas, juntou-se ao Futebol Clube do Porto, onde joga actualmente com a camisola sete, na posição de extremo direito. Quando entra em jogo, benze-se, e dentro do campo destaca-se pelo seu remate fortíssimo e pela "trivela", um cruzamento com a parte de fora do pé direito.

De si próprio, diz ser alegre, simpático e orgulhoso. Com ascendência cigana, um dos valores que preserva da sua tradição cultural é a dedicação à família. No entanto, após o divórcio dos pais, Ricardo ficou a viver com a mãe, não tendo sido educado dentro da cultura cigana.O irmão é uma das pessoas mais importantes na sua vida. Alfredo foi uma esperança no Sporting, mas nunca chegou a ser uma certeza. Foi ele que impediu Ricardo de deixar o futebol para se dedicar ao hóquei em patins. Na altura tinha dez ou onze anos e praticava no CACO de Campo de Ourique.

Para os críticos, Ricardo é um jogador irregular. Mas será isto mau? Miguel Sousa Tavares, conhecido pela sua devoção ao clube azul e branco diz “pois eu tenho a tese contrária: há grandes jogadores que valem pela sua regularidade e há grandes jogadores, que vivem da inspiração repentina e que, necessariamente, são irregulares”.

João Bonzinho, outro crítico, compara-o a Cristiano Ronaldo. “Cristiano Ronaldo é bem capaz de ser o melhor jogador do mundo neste momento, mas Quaresma é mais «selvagem», mais «puro» enquanto génio. Cristiano é um jogador completo, arrebatador, demolidor; Quaresma é um mágico, um daqueles jogadores capazes ainda de inventar truques com uma bola, de fazerem o impensável de, na subtileza de um simples toque, mudarem o vento do jogo.”

Basta fazer uma busca na internet, para se perceber a sua fama. O seu nome aparece referenciado 56 mil vezes só em páginas portuguesas. Luís Figo, por exemplo, aparece apenas 54 mil vezes. Tem vários blogues e páginas não oficiais criadas pelos fãs e, visitando-as, repara-se que é apreciado por adeptos do seu clube, mas não só…

18.8.07

Gastronomia Molecular - Reportagem



Gastronomia ou Experiência Científica

Muito daquilo que fazemos ao preparar um prato pode ser descodificado pela ciência, tendo por base a composição dos alimentos e as alterações físicas e químicas que ocorrem durante a sua preparação. Quando a Física e a Química deixam o laboratório e entram na cozinha, o que acontece?


Numa das salas do Instituto Superior de Agronomia (ISA) o curso vai começar. Este já é o terceiro dia em que se repete. Os dois primeiros esgotaram. Aqui vão ser abordadas questões da gastronomia do ponto de vista científico, onde as moléculas são o centro das atenções. Estamos num curso de Gastronomia Molecular.

Antes de começar, faz-se a apresentação dos professores. São um grupo que se encontrou em 2001 no projecto “A Cozinha é um Laboratório”, da agência Ciência Viva, uma unidade do Ministério da Ciência e da Tecnologia, que visa a promoção da cultura científica e tecnológica junto da população portuguesa. Na altura, o objectivo era divulgar a ciência de uma forma “saborosa”. As suas formações são diversas. Paulina Mata, Margarida Guerreiro, Catarina Prisca e Conceição Loureiro-Dias têm formação em química e engenharia química. Joana Moura é arquitecta paisagista e bolseira do ISA na área de Gastronomia Molecular. O grupo deu-se bem e, hoje, continua junto, partilhando o interesse pelas bases científicas da cozinha.

Do outro lado, a assistir ao curso, também estão pessoas de diferentes áreas. O chefe de cozinha e a pasteleira do Casino de Lisboa, o sub-chefe de cozinha do hotel Cascais Mirage e o chefe de cozinha do Hotel Avis marcam presença, tendo como objectivo comum o aprofundar de conhecimentos nesta área para aplicação no seu dia-a-dia.

A aula inicia-se e a questão impõe-se: porquê molecular? No entanto, a resposta é simples: “Todos os alimentos são constituídos por átomos que se ligam formando moléculas. Quem cozinha manipula o movimento das moléculas, as suas ligações e alterações e a quantidade e o processo de transferência de calor”, esclarece Margarida Guerreiro, procurando desmistificar esta nomenclatura e outros dos “medos” de quem contacta pela primeira vez com esta ciência, a utilização de químicos. Qual o elemento essencial na cozinha? “A água. A água é um mundo. Somos nós. A par do cloreto de sódio é o reagente mais simples”. Afinal a água é um composto químico, duas moléculas de hidrogénio e uma de oxigénio. Utilizamo-la todos os dias. Se pretendermos grandes e rápidas alterações químicas, basta subir a temperatura para aumentar o movimento das moléculas. É esta a explicação por trás de um acto quotidiano tantas vezes repetido: se queremos que o leite aqueça mais rápido, basta rodar o botão do fogão.

Da teoria passa-se à prática. Estamos agora num dos laboratórios do instituto. Em cima das bancadas vêem-se desde varinhas mágicas e batedeiras, a tubos de ensaio e pipetas. Joana Moura apresenta o alginato, o xantano e o gluco. Não passam de pós. Começa-se por fazer uma solução de alginato com chá. Sob o olhar atento dos chefes de cozinha, explica “Fica com ar. Tem de se esperar duas horas. Ou colocar numa máquina de vácuo”. Passa-se à metilcelulose: “Só se dissolve a frio, mas só dispersa a quente. No entanto, se aplicarmos força motora não é preciso aquecer. Como incorpora muito ar, tem de repousar a frio”.

João Fernandes é aluno do curso de Cozinha e Pastelaria da Escola de Hotelaria de Lisboa. Quando interrogado sobre a razão que o leva a estar aqui, responde: “Tendo em conta que os quatro melhores restaurantes do Mundo utilizam os conhecimentos da Gastronomia Molecular aplicados à cozinha, parece-me importante vir adquirir tais conhecimentos. Por outro lado, este é o único instituto em Portugal a leccionar cursos nesta área”. Depois de ouvir as explicações, passa à acção. O objectivo é fazer pequenas esferas utilizando uma solução de sumo com xantano a 0,3 por cento e gluco a 2,5 por cento. Na Gastronomia Molecular a precisão nas proporções e nas quantidades é crucial. Quem a queira praticar, para além de ter uma balança de precisão, deverá ser bom a matemática. A famosa “regra de três simples” é utilizada todos os dias, pois só com ela se poderão manter as proporções.

Mas o interesse por esta “ciência” não passa só pelos profissionais de cozinha. Maria Leonor Souza é responsável pelas publicações culinárias da Unilever – Jerónimo Martins. O que a leva a frequentar este curso é o interesse por estes temas e o factor “novidade”: “É uma maneira diferente de abordar o acto de cozinhar e a combinação dos sabores e das texturas. É uma área que ainda está pouco explorada e que é muito interessante. O meu objectivo é entusiasmar as pessoas. Agora está a renascer um entusiasmo grande pela cozinha e cozinhar está na moda ”.

Continua, ela também, a seguir a receita. Feitas as esferas, deitam-se na solução de alginato, deixando repousar durante 3 minutos. Passado este tempo, o resultado está à vista: pequenas bolinhas de aspecto gelatinoso, assemelhando-se a gomas. Quando levadas à boca, rebentam, libertando o sumo. O efeito surpresa é plenamente alcançado. “É este o objectivo da Gastronomia Molecular: surpreender através da diferença nas texturas e da atractividade visual”, explica Margarida Guerreiro, acrescentando que “A novidade neste mundo globalizado em que podemos experimentar a gastronomia de países tão diversos como o Tibete ou o Brasil dentro da mesma cidade, já não está nos sabores. Ela surge da colaboração entre cozinheiros e cientistas que inventam novas texturas e introduzem novas cores”. Assim, para conseguir estes efeitos, novas técnicas e substâncias são utilizadas. O azoto líquido, por exemplo, serve para dar uma consistência mais cremosa aos gelados; a peelenzima consegue descascar um citrino sozinha e os transglutaminases dão para colar alimentos que tenham proteínas. Uma das professoras sugere “Experimentem juntar galinha com atum!”.

O medo dos “E”

Muitas destas substâncias são também designadas por “E”. Não se estarão a utilizar produtos prejudiciais à saúde? “Tudo o que é ingerido em demasia faz mal. Se comermos um quilo de amêndoas, não vamos de certeza passar bem, pois embora em quantidades muito pequenas, têm cianeto”, esclarece Catarina Prisca e Joana Moura acrescenta: “Muitas destas substâncias são extraídas da natureza e já utilizadas há muito tempo em países como, por exemplo, a China”. Margarida Guerreiro conclui, afirmando: “Os espessantes não são cancerígenos. Nada está provado. Há uma grande desinformação”.

História

A denominada “Gastronomia Molecular” começou quando um físico e um químico se juntaram para perceber os processos que ocorriam na cozinha. Estávamos em 1988 e o trabalho de Nicholas Kurti e Hervé This demonstrou que muito daquilo que fazemos com base na experiência pode ser descodificado pela ciência, tendo por base a composição dos alimentos e as alterações físicas e químicas que ocorrem durante a sua preparação. É de Nicholas Kurti (o físico húngaro) a célebre frase “É preocupante que se saiba mais sobre a temperatura no interior das estrelas do que sobre a temperatura no interior de um prato de soufflé”.

Dicionário de substâncias espessantes, gelificantes e estabilizantes:

Espessante: permite aumentar a viscosidade de um alimento.

Gelificante: confere textura através da formação de um gel.

Estabilizante: contribui para dar uniformidade ou consistência a preparados.

Hidrocolóides: são colóides (substância semelhante a cola) com uma especial atracção pela água e que, quando em contacto com esta, agarra-a como que “aprisionando-a”.

Metilcelulose: é um dos aditivos alimentares permitidos pela legislação comunitária e americana, designado por E 461. É produzida industrialmente a partir da celulose.

Xantano: é um dos aditivos alimentares permitidos pela legislação comunitária e americana, designado por E 415, sendo utilizado desde 1969. É um polissacárido (hidrato de carbono muito grande) produzido pela bactéria Xanthomonas Campestris, frequente em folhas de couve, couve-flor e brócolos.

Alginato: é uma das substâncias mais abundantes na natureza. É um polissacárido extraído de algumas algas castanhas Phaeophyceae, principalmente de espécies do género Laminária.

Mais Informação

Blogue “Jo Cooking”: http://www.jocooking.typepad.com

Site “Ciência Viva”: http://www.cienciaviva.pt

Instituto Superior de Agronomia

4.8.07

Perfil de Rui Horta, Coreógrafo - 3ª Parte



Em 1984 regressou a Portugal, porque tinha saudades, mas sobretudo porque lhe ofereceram a oportunidade de criar uma companhia de dança. Foi a Companhia de Dança de Lisboa. Tratava-se de um projecto de continuidade daquilo que eram as companhias de reportório. Era um projecto mais voltado para a dança moderna com alguma nova dança e dança contemporânea. Nela começaram a dançar pessoas como João Fiadeiro, Benvindo Fonseca e Clara Andermatt. “Era praticamente o único sítio onde se poderia fazer dança de uma forma mais profissional fora do Ballet Gulbenkian. Foi bonito nesse aspecto, mas foi limitado no ponto de vista estético. Não foi um projecto de ruptura”. Convidou um dos seus melhores amigos para fazer a direcção administrativa, José Manuel Oliveira, que nessa altura era fotógrafo, mas as coisas acabaram por não correr bem. “Houve uma situação um bocado desagradável, um processo um pouco “hamletiano”. Ficou ele com a companhia e eu fui posto na rua, o que foi fantástico para mim, agradeço-lhe profundamente”.

Foi nesta altura que surgiu outra das pessoas mais importantes no seu percurso, Carlos Andrade, marido de Vanda Ribeiro da Silva. “Foi um homem extraordinário comigo, apoiou-me”. Carlos Andrade, quadro intermédio num governo muito frágil, emprestou-lhe o seu dinheiro pessoal para lançar o Rui Horta & Friends. “Não havia Ministério da Cultura na altura, havia uma vaga Secretaria de Estado da Cultura, com uma direcção geral de acção cultural”. Aqui Fernando Alçada, director geral de acção cultural, também teve um papel importante, ao apostar no seu trabalho. “São estas coisas que nos fazem crescer”.

E Rui Horta cresceu. Os seis anos, entre 1984 e 1990, são caracterizados por uma grande vontade de passar conhecimento de tudo o que tinha aprendido em Nova Iorque a todas as pessoas que queriam dançar, “formei montes de gente e toquei uma geração inteira”. Nesta altura, tinha o estúdio nos Bombeiros Lisbonenses. Este estúdio foi um ponto de encontro de freelancers, livre para toda a gente. “Era o meu estúdio de dança. Toda a gente tinha a chave. Muita gente ensaiava”. Nomes como João Fiadeiro e Clara Andermatt passaram por lá, “às dez da noite iam para o estúdio e ensaiavam até à uma, duas da manhã. Porque era de todos”.

É então que o coreógrafo parte para a Alemanha, ali fica por dez anos e regressa para se instalar em Montemor-o-Novo. A relação de empatia com o Presidente da Câmara, Carlos Pinto Sá, foi fundamental. “Falámos meia hora e ele foi-me logo mostrar o convento. Ficou decidido ao fim de meia hora que eu ia ficar lá”. Ao fim de dois meses, Rui Horta já estava em Montemor com “armas e bagagens”. O primeiro outdoor que pôs do lado de fora do convento teve inscrita a frase “Estamos Cá”.

A relação de Rui Horta com a terra que o acolheu tem sido marcada por um trabalho muito próximo com várias instituições. Após seis anos, o Convento da Saudação, graças ao seu trabalho, está parcialmente recuperado e as negociações com o governo para a recuperação deste, que é o maior convento do sul de Portugal, estão a decorrer. A proximidade com o tecido escolar também tem sido uma aposta.

Mas, para lá deste trabalho sociocultural, há o trabalho que é realizado no centro coreográfico “Espaço do Tempo”. Ali recebe anualmente 36 equipas criativas, que se traduzem em mais de 700 artistas. “Pessoas emergentes. Quando recebemos um pedido, vamos ver a companhia in locco ou vemos em vídeo. É um trabalho muito intenso. No fim de contas, quem tem de escolher, tem de estar informado. Essa é a parte mais dura, mais difícil”.

Quando olha para trás custa-lhe a acreditar que já tivessem passado trinta anos. Foram milhares e milhares de horas a trabalhar com pessoas, em que conheceu o mundo inteiro. Existiram momentos de grande solidão. “Sozinho no meio de uma grande cidade”. Mas também existiram momentos de enorme sucesso em cidades do outro lado do planeta, como Tóquio e Xangai. “São 30 anos que já são para mim duas vidas, ou três. Hoje já podia ir-me embora, porque já fiz tudo o que tinha para fazer, não preciso fazer mais”.

No entanto, o arquitecto, bailarino, professor, coreógrafo e pai tem cinquenta anos e continua a receber convites para sair de Portugal. “É muito tentador, mas não vejo os meus filhos a mudarem para outro país. Se eu não tivesse crianças, talvez”. Os seus filhos vivem e estudam em Montemor. “Vai tudo à escola em Montemor. À escola pública, à saúde pública. Eu sou uma pessoa que acredita nos serviços públicos. As pessoas têm que pagar impostos, mas têm que exigir dos governantes”. Esta educação que dá aos filhos é muito diferente da que ele próprio e os seus sete irmãos receberam. O pai foi professor catedrático da Faculdade de Medicina. “Foi um médico bastante conhecido em Portugal, foi bastonário da ordem dos médicos. Foi director de um hospital”. A mãe também foi professora universitária, doutorada em anatomia patológica.

O filho “do meio da tabela” viveu a sua infância e adolescência nas Avenidas Novas, em Lisboa, mais precisamente na esquina da Av. Defensores de Chaves com a Av. Miguel Bombarda. Foi aluno da turma B do Camões, da qual saiu também António Guterres. “Venho de uma família com um nível intelectual muito grande. Os meus pais, apesar de terem profissões muito técnicas, eram pessoas intelectualmente muito diferenciadas. Tenho uma irmã, a Maria Teresa Horta, que é poetisa e tenho um irmão que é de História. Há de tudo na minha família”. Dos seus ex-colegas do Liceu Camões ainda mantém contacto com alguns, entre eles, António Carrapatoso, actual presidente da Vodafone. “É um homem muito inteligente, com quem é bom conversar”.

Teve uma infância feliz, embora a considere um pouco formatada. “Foi uma educação da burguesia intelectual portuguesa, com umas referências um pouco britânicas, como compete à própria burguesia portuguesa”. Da parte do pai teve uma influência muito grande da literatura francesa. “O meu pai lia muito Simone de Beauvoir, Saint-Exupéry, Sartre, Balzac, toda aquela literatura de referência francesa que andava sempre ali por cima do escritório e que eu li muito cedo”. Cedo começou a assinar o L’Avant Scène, onde viu as primeiras “figurinhas” de espectáculos, com fotografias, textos teatrais, que lia em francês. “Na prática fui um privilegiado. Tive acesso, desde muito cedo, a estas experiências fortíssimas”. No Verão, como contra-ponto a esta educação um pouco mais formal no Inverno, eram, ele e os irmãos, deixados à solta numa praia do sul durante muitos meses com uma tia já mais velha. “Libertou-nos de algumas tensões de formatação. Equilibrou a balança. Foi um tempo absolutamente maravilhoso, de selvajaria, de possibilidade de conhecer tudo e mais alguma coisa”.

Hoje pensa que poderá não estar a dar aos filhos aquilo que os seus pais lhe deram. “É uma grande incógnita para mim. Tenho dúvidas se estou a fazer bem”. Por outro lado dá-lhes muitas outras coisas. “Temos tempo para eles. O meu pai não estava tão perto de mim, como eu estou dos meus filhos. Faço os trabalhos de casa com eles e vamos dar passeios no campo. Andamos de bicicleta. Falamos imenso. Todas as noites lhes conto uma história e há uma grande proximidade na família”.

Rui Horta, para lá de coreógrafo, é um criador e considera o que faz um trabalho de auto-destruição. “Eu nunca estou contente. Mas eu também sou assim. Mesmo quando estou calmo, nunca estou sereno”. Se tivesse de escolher os trabalhos mais representativos destes trinta anos, Rui Horta escolheria a primeira obra que foi fazer para a Alemanha, “Linha” (uma das obras de ruptura. Em 1989). Depois optaria pela obra que o tornou conhecido mundialmente, “Objecto Constante”, em 1994. Há também uma “obra maldita”, mas que adora, “Khora”. “É o nome de um livro do Jacques Derrida, que eu gosto imenso e que deu origem a uma obra negra minha, mas que é talvez uma das minhas melhores obras, em 1997”. E, finalmente, a obra que considera ser a mais forte, “Pixel”. “O Pixel aparentemente marcou muita gente. Continua a ser uma obra muito pedida, muito pretendida. Há coisas assim misteriosas. Não custou nada a fazer. Fiz isto num mês e meio. As coisas que eu tenho feito de mais interessantes não têm custado. Às vezes quando a gente se envolve imenso com as coisas, custa que se farta”.

Para o criador Rui Horta há de facto um processo de criação que é quase como um processo de incubação de uma doença viral. “Apanhas uma infecção qualquer. Sem saber o que tens ainda, começas a ter dores no corpo. Tens sintomas, mas não sabes ainda qual é o diagnóstico”. Para ele, a criação é isto. Começa com os seus livros de cabeceira. Dantes, tinha, por exemplo, os do Rem Koolhaas, prémio nobel da arquitectura (Pritzker) e o “Delirious New York”. Depois passou a ter o “Small Medium Large x-Large”. “A gente vai lendo. Ao fim de seis meses, apercebes-te que já tens a obra mais ou menos, mas que estás a ficar tenso. Aquilo é uma coisa que te afecta”. Depois vem a fase de decidir efectivamente fazer a obra “x”, em que se pede o dinheiro. É aqui que o criador põe tudo no papel. E depois vem a concretização. “Quando vais para o estúdio fazer a obra é a terapia. Depois da incubação, depois do diagnóstico, vem a terapia para te curar”. E, por fim, a estreia. “O momento da estreia é o momento em que estás curado. Estás curado, acabou, tiraste aquilo do sistema. A criação é mesmo daquelas coisas que é criar ou morrer”. E, ao sétimo dia, descansa, fica muito tranquilo, um bocado apático durante uns tempos, porque ficou curado. E depois começa a vir outra incubação, mais um vírus, mais um vírus…

Inês Branco, Julho de 2007

1ª Parte

2ª Parte

2.8.07

Perfil de Rui Horta, Coreógrafo - 2ª Parte


Pixel


Dos dez anos de Alemanha, houve uma nova crise em 1997. Mas houve também a criação de outra companhia, o Rui Horta Stageworks, que ainda existe hoje e com a qual assina, para diferenciar do Espaço do Tempo, o espaço multifuncional criado em Montemor. Chama-se Stageworks, porque com esta companhia não faz apenas dança. Faz instalação, artes plásticas, multimédia, teatro, ópera e artes de palco. Os anos em que esteve na moda passaram. O Thèâtre de la Ville foi seu co-produtor. “É o teatro mais importante em toda a Europa, talvez em todo o mundo. É o teatro mais importante em todo o mundo e eu fui co-produzido pelo Thèâtre de la Ville durante seis anos, entre 93 e 99. Ganhei em 92 o concurso Bagnolet, que é uma espécie de Óscares da dança.”

Para Rui Horta os prémios significaram sempre uma surpresa muito grande. “Quando eu ganho Bagnolet nem acredito. Depois é que me apercebi que havia 400 coreógrafos e eu ganhei. 400 coreógrafos do mundo inteiro e tu não percebes. Nem chegas a perceber. Ganhaste, pronto! No dia seguinte vais a casa dos teus amigos ou vais jantar fora”. A surpresa foi ainda maior talvez porque não foi Rui Horta a candidatar-se ao prémio. Foi um conjunto de catorze teatros alemães que se juntou e que o candidatou a representante alemão em 1991. Rui Horta só soube quando recebeu uma carta com o pedido de autorização. Ainda em Portugal, em 1989, tinha-se candidatado com o “Interiores”, uma obra de que gosta muito, e nem sequer chegou a passar a primeira eliminatória de escolha. “Por aqui se vê que quando a gente quer uma coisa, não tem nada, quando a gente não quer nada tem uma coisa. A vida é uma coisa misteriosa”.

Para Rui Horta não existe óptica de carreira na profissão. Há um percurso. “Todos os dias levantas-te e fazes aquilo que sabes e gostas. Cada dia é um dia novo, é um dia ‘jubilatório’”. Agora, que está mais velho, acontece-lhe mais frequentemente levantar-se de manhã e dizer “Que bom, tou vivo. Vou fazer o que me apetece durante o dia. Tenho umas coisas chatas para fazer pelo meio, mas vou fazer deste dia um dia bestial”.

Se lhe perguntar quem foram as pessoas mais marcantes neste seu percurso, Rui Horta tem-nas bem presentes. A primeira foi uma professora muito importante na sua vida, Vanda Ribeiro da Silva, que lhe ensinou os primeiros passos da dança clássica na Fundação Gulbenkian. “Eu tinha 16 anos e caiu o fascismo. Foi uma coisa extraordinária, libertaram-se imensas tensões sociais e eu libertei o meu corpo também.” Noutra conjuntura talvez tivesse sido arquitecto. Na prática, acabou por ser um coreógrafo. Antes disto, após ter frequentado os cursos pré-profissionais, percebeu que não iria dançar no Ballet Gulbenkian. “Não tinha aquele corpo perfeito de bailarino clássico, que naquela altura era muito importante”.

Na alma ainda continua arquitecto. “Eu faço arquitectura com o “Corpus”, eu crio luz, eu crio cenografias. Vês o meu palco? É um palco de arquitectura. Não tem nada a ver com abrir a cortina e fazer uma dança. Eu sempre trabalhei com linguagens cénicas, com linguagens espaciais”.

O 25 de Abril abriu-lhe horizontes extraordinários, ficou fascinado com a liberdade, com as possibilidades de viajar. Foi aqui que surgiu Maria Ângela de Sousa, uma pessoa que foi um instrumento fundamental na sua vida. Cientista e imunologista, vivia nessa altura em Nova Iorque. Quando a mãe de Rui Horta faleceu, em 1978, com apenas 21 anos, Maria Ângela pôs-lhe a chave de sua casa nas mãos e ele foi para Nova Iorque. Pensou em ficar três meses, mas acabou por ficar seis anos. “Foi um tempo fantástico. Tudo é possível. Tive 40 mil empregos. Era filho de professores catedráticos e entreguei pizzas ao domicílio, fiz limpezas de apartamentos, dei aulas nos sítios mais escabrosos, trabalhei como garçon num restaurante. Fiz todos os trabalhos e mais alguns e, a certa altura, comecei a ser reconhecido como professor”. De facto, Rui Horta foi para os Estados Unidos para dançar, mas nos últimos anos era já um professor de referência em Nova Iorque, “talvez um dos professores mais importantes de dança moderna em Nova Iorque”.

Foi também em Nova Iorque que conheceu a sua mulher, actualmente ex-mulher, “minha grande companheira, minha grande amiga. Foi durante 15 anos minha mulher, da qual tenho 3 filhos maravilhosos”. Esta era psico-terapeuta, mas tinha uma formação de bailarina. Nessa altura dançava e foi a Nova Iorque nas férias de Verão para fazer uma “reciclagem”. Rui Horta tinha pessoas do mundo inteiro a trabalhar consigo, “conheci muita gente e conheci-a a ela”.

Este percurso profissional como professor vai desde 1982/83 até 1989/90. “Nunca diria a ninguém que sou bom coreógrafo. Mas se me perguntarem se sou um bom pedagogo, eu sou um excelente professor. Fui um excelente professor e formei bailarinos muito bons, tanto cá, como nos Estados Unidos”. Rui Horta gosta de passar conhecimento, mas gosta mais ainda de criar obras de dança. Após o regresso dos Estados Unidos, em 1991/92/93 foi professor convidado no Laban Centre em Londres, no Conservatório de Paris, no Conservatório de Lyon e na Rotherdam Dance Academy. Mas, pouco a pouco, o ensino passou a interessar-lhe menos. Estava cada vez mais fascinado pela coreografia. “A partir do final dos anos 80, princípios dos anos 90, a coreografia tomou a dianteira das minhas preocupações e eu comecei a desaparecer como professor. Aquilo não era prioritário para mim”.

1ª Parte

3ª Parte